(*) Mário Ananias
Em 1976, na Avenida Amazonas, esquina com São Paulo, em Belo Horizonte, havia uma grande loja de cosméticos. A então famosa Perfumaria Lourdes. Quase em frente a um embrião dos atuais shoppings, a charmosa Galeria do Ouvidor, que tinha até escada rolante. Um luxo.
Era meu segundo ano na Escola Técnica e eu me sentia muito importante, até porque os alunos daquela Instituição eram considerados especiais. É bem verdade que o termo “especial”, por algum tempo, também foi desvirtuado para chacota em função de uma propaganda estatal que se referia assim às pessoas com Síndrome de Down.
Aproveitei o valor da bolsa que recebia como estagiário e fui até essa loja para comprar um presente para uma linda mocinha, colega de escola. Nessa época, o movimento evangélico ainda era incipiente e todas as suas vertentes eram tratados como “crentes”. Como um querido colega monlevadense, Manoel que, se não me engano, era adventista.
Tomamos o mesmo ônibus, com ponto final na Avenida Paraná. Estávamos em março e esse colega falou com muita propriedade sobre tão importante período para o Cristianismo: a Páscoa. Fiquei absorto na conversa a ponto de quase esquecer o motivo da ida ao centro da cidade. Nos despedimos e fui em direção à loja, passando pela Praça Sete.
Onde hoje está instalada a torre de vidros escuros, o edifício Dona Júlia Nunes Guerra, era uma casa clarinha, uma lanchonete encantadora, que era “a coqueluche” de então, o Ted’s. Não resisti, entrei e pedi um suco de goiaba. Foi feito com goiabas brancas e ainda consigo ver a bela taça em que era servido e sentir o delicioso gosto.
No curto caminho da lanchonete até meu destino continuei pensando nas palavras do meu amigo. Palavras que elucidavam detalhes da brutalidade desferida contra um homem que dedicou sua vida a fazer o bem, a ensinar respeito; que inaugurou a mudança de postura em relação às mulheres, dignificando seu espaço e dando-lhes voz, num tempo em que eram tratadas com desdém. Um pregador que acolheu, com amor, aqueles que a vida tratou com desprezo, com deficiências que, naquele tempo, o próprio termo já era uma forma de menosprezo: aleijados, incapazes, párias.
Por esse tempo, já estava bastante envolvido com as causas sociais, integrando alguns Conselhos, aprendendo sobre um mundo novo de demandas justas e ações, nem tanto. Na cabeça, todo aquele tumulto de fazer correlações entre a vida daquele que dividiu a história humana em antes e depois de seu nome e a vida de tantos que também se dedicam, no limite de suas forças, a causas nobres e edificantes e que, guardadas as proporções, também sofrem assédio, rancor, desamor.
Assim pensando, lembrei da música: “A vida é só pra cantar”, interpretada por Wilson Simonal, como um grito, uma súplica por socorro, mas que todos cantavam só pela alegria do refrão. Quantos vivem sob imensa pressão, na esperança de que um dia seja o seu dia de renascer? O seu dia de Páscoa? Esqueci-me completamente do presente…
(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro:
Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias