(*)Hortência Carvalho

Desde o nascimento dos ideais iluministas do século XVIII, a religião foi desassociada da figura do Estado Moderno. Trata-se do Estado laico, que não adota nenhuma religião como oficial e garante de forma igualitária liberdade de crenças religiosas a todos os seus cidadãos. É o que garante a atual Constituição brasileira.
Em tempos de eleição, este assunto sempre vem à tona, quando vários líderes religiosos se tornam candidatos e têm em seus fiéis a expectativa de seu voto, chegando a misturar política e religião.
Em 2020, o TSE apreciou o tema no Recurso Especial nº8285, interposto contra decisão que considerou abusivo um discurso de uma autoridade religiosa durante um culto. A ação havia sido julgada em primeira instância como procedente para cassar o registro de candidatura da autoridade por abuso de poder religioso. Seu fundamento era de que ela teria usado da sua influência de líder religiosa para influenciar seus ouvintes, conduta esta capaz de interferir na liberdade de escolha dos seus fiéis.
É importante esclarecer que é pacífico o entendimento de que qualquer espécie de propaganda eleitoral dentro de qualquer templo religioso é irregular, por se tratar de bem de uso comum, cuja sanção pela lei eleitoral é multa no valor de 2 a 8 mil reais. Altar não pode servir de palanque. Também é vedada qualquer doação à campanha eleitoral, financeira ou estimável em dinheiro, por parte de entidade religiosa, considerando fonte vedada capaz de levar à cassação do candidato.
Mas naquela ação se discutia algo muito mais profundo e grave. A questão se pautava na configuração do abuso do poder religioso, que implicaria em cassação da candidata. Isto porque o abuso de sua influência religiosa perante seus fiéis implicaria na desigualdade da disputa eleitoral ao favorecer consideravelmente sua candidatura frente aos demais candidatos.
Naquele julgado, o ministro Edson Fachin, em detalhada fundamentação, entendeu pela existência do abuso do poder religioso, uma vez que compete à Justiça Eleitoral impedir qualquer força política capaz de coagir moral ou espiritualmente a plena liberdade de consciência dos eleitores. Para ele, “o desvirtuamento da ação eclesiástica” direcionado para fins eleitorais é nocivo ao processo democrático.
No entanto, o ministro foi voto vencido, tendo entendido o plenário do TSE que não caberia à Justiça Eleitoral capitular nova espécie de abuso de poder, quando a lei não o prevê. Assim, só é cabível ação de cassação por abuso quando configuradas as espécies que a legislação já tipifica, quais sejam, abuso do poder político, econômico ou dos meios de comunicação social.
É indiscutível o poder carismático dos líderes religiosos enquanto candidatos. É fato que eles exercem forte influência ou quiçá temor reverencial sobre seus fiéis, na busca de seu voto. Isto chega a ser inerente à função eclesiástica.
Ressalvadas as suas proporções, esse tipo de público eleitor é comum quando os candidatos são artistas, médicos, influencers, esportistas ou qualquer outra profissão que envolva grande número de simpatizantes. Porém, são os abusos que distorcem a paridade da disputa. No caso do abuso religioso, sua nocividade está na interferência da vontade do eleitor por meio de elemento externo ao jogo político, qual seja, a fé.
Escolher um candidato por motivo de suas convicções religiosas é direito do eleitor. Mas, ser coagido a votar por força do poder da autoridade religiosa já excede o direito a liberdade de crença constitucional. Note-se que a mistura de política e religião já se provou temerária ao longo da história e é em razão disso que a melhor opção foi optar pelo Estado laico.
É importante frisar que o abuso do poder religioso não está impune na legislação eleitoral. Pode implicar em outras sanções como propaganda irregular por emprego de meios destinados a criar estados mentais, emocionais ou passionais. Também pode configurar crime eleitoral, nos casos de assédio, se comprovada a coação, mediante uso de violência ou grave ameaça. Mas, pelo atual entendimento do TSE, não deve levar à cassação de registro ou mandato, exceto se vier acompanhado de abuso de poder econômico, político ou dos meios de comunicação social.