Nascer no interior, ainda que numa cidade cuja existência se deu a partir de uma grande siderúrgica, tem o dom de emprestar à infância e juventude cores tão belas quanto às das manhãs de primavera no campo. E a beleza se consolida principalmente pelas estórias que ouvimos, observamos e vivemos. Todo o conhecimento expresso em palavras que emprestam o saber e o entendimento de pessoas que viveram experiências marcantes e dignas de serem contadas e também ouvidas com atenção. No bairro Vila Tanque, em João Monlevade/MG, fomos presenteados com um grande contador de estórias mescladas de verdade e de imaginação. Da mesma forma que os livros sobre terras distantes ou o mar, como Moby Dyck, de Hermann Melville, ou Ilíada e Odisseia, de Homero; criávamos na mente as imagens que o contador descrevia envolvendo-as nas cores e detalhes, conforme nossas bases mínimas de conhecimento.
E tudo absolutamente encantador. Naquela esquina da avenida do Contorno, onde terminava a rua 8 e iniciava aquela que levava ao Hospital Margarida e ao aeroporto; ao redor de uma fogueira, ouvíamos a estória de um simpático senhor negro, aposentado, com uma voz grave, gutural e muito envolvente. Havia um padrão que criava um ambiente propício para a audição, como pano de fundo, cenário iluminado pelas labaredas, embalado pela dança da fumaça de seu cachimbo de um marrom escuro e brilhante.
Seu olhar perpassava nossos rostos atentos e ansiosos pelo início das estórias, quase sempre de grande suspense.
Aquele momento, para mim era marcante, muito especial porque me colocava em pé de igualdade com tantos quantos constituíssem aquela plateia aboletada na calçada, nos meios-fios, no baixo muro da casa. Não havia pressa nem a necessidade de ficar equilibrado, de pé.
Entre as estórias de que me lembro, havia a do fantasma do porão da Usina.
Como toda grande construção, as fundações eram bem profundas e no caso da Siderúrgica Belgo-Mineira, haviam porões importantes para manutenções elétricas e hidráulicas. Turnos divididos a cada 8, funcionando 24 horas. Esse era o cenário.
“- Quase uma da madrugada de inverno escuro e úmido. Três operários precisavam dar manutenção na sala de refrigeração. Dois, mais jovens, amedrontados pela iluminação ruim e piso escorregadio, tinham ouvido casos de alma-penada. De trabalhadores que teriam morrido ali e nunca foram encontrados. Gildásio, quase 50 anos, não acreditava em nada disso. Pegou a lanterna e disse aos dois que esperassem, pois ele iria resolver o problema sozinho. Em quinze minutos voltaria. O frio aumentava, o vento nas venezianas gemendo como um moribundo, vibrava as aletas. Trinta minutos. As peças soltas batiam como alguém desesperado pedindo abrigo. Cinquenta minutos. Muitos sons estranhos vinham do fundo das escadas por onde desceu Gildásio. Passa de hora e nada. O pavor aumentava. Pernas tremendo de frio e medo, cabelos eriçados. Quase duas horas. Ouvem passos em sua direção. O medo era tanto que desmaiaram quando um vulto apareceu atrás deles. Era o Gildásio que tinha feito a volta”.
O problema era dormir depois dessas estórias.