(*) Mário Ananias

A liberdade se constrói, principalmente, com corações e mentes que se dignam a reconhecer no outro o direito à vida, à opinião e à busca da felicidade. Não há que se impor um formato que faça feliz a um como a fórmula mágica, o graal que faz felizes a todos.
O “Santinho do Pau Oco”, expediente utilizado para reduzir a exploração dos brasileiros pelos portugueses, deveria, ao invés de ser retratado como referencial a enganadores, ser um dos símbolos da luta contra a opressão de quem produz em favor de quem apenas usufrui o resultado do trabalho alheio.
Foi essa a marca deixada pelo alferes – patente equivalente a subtenente – Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Assim como muitos outros em fins do século XVIII, ele reagiu, contra a espoliação a que os brasileiros estavam sujeitos pela coroa portuguesa. Esta lhes tirava vinte por cento – o conhecido quinto dos infernos – de tudo o que produziam, devolvendo quase nada em termos de prestação de serviço público à população.
Descoberta a intenção de liberdade, os inconfidentes foram presos e muitos deles condenados à morte pela forca, outros tantos ao degredo e outras penas. Cumpre notar que todos, exceto o alferes, eram abastados. Que todos tiveram suas penas de morte comutadas, exceto o alferes.
E ainda que o propósito contra Tiradentes tenha sido de eliminá-lo, não só da vida, mas também da memória, a história preservou seu heroísmo e sua lembrança, inclusive no samba-enredo campeão do desfile em 1949. “Exaltação a Tiradentes”, belo samba-enredo da Escola de Samba Império Serrano, de autoria de Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado, regravado inúmeras vezes, inclusive pela magistral Elis Regina, tratou em poucas palavras, da fibra e da honra de um homem de princípios e de fibra.
Para além da memória em livros e músicas, também se gravou em pedra, apesar das controvérsias, a imagem daqueles que lutaram pela liberdade.
Antônio Francisco Lisboa, nascido apenas oito anos antes de Tiradentes, em 1738, foi seu contemporâneo em Ouro Preto, então capital mineira. Esse filho de português e africana, nasceu escravo e muito depois alforriado pelo próprio pai e senhor, que levou anos para reconhecê-lo como filho. Quis o destino que viesse a ser um excepcional escultor, e fosse afetado por doença degenerativa que o tornou PcD sem, no entanto, tirar o seu talento, apesar de reduzir sua capacidade física.
Entre suas monumentais obras de arquitetura, entalhe e escultura, de reconhecimento internacional como das maiores obras da arte barroca e rococó, há um conjunto que parece ter vida própria. As esculturas dos doze apóstolos, em frente à Matriz do Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo/MG, localizada na região central do estado.
É difícil para qualquer vivente passar por ali e não sentir o impacto que a força imaterial daquelas imponentes imagens suscita. Como cena cinematográfica, em momentos especiais do dia, por efeitos de luz e sombra, algumas pessoas já relataram a sensação de serem observadas por algum daqueles colossos de pedra sabão, intuindo expressões de dor, de abandono, de angústia.
Quem atentar com afinco, talvez reconheça alguma semelhança entre os rostos daqueles apóstolos petrificados e as imagens guardadas dos inconfidentes mineiros. Um deles talvez tenha uma marca no pescoço. Uma marca que talvez remeta à angústia de um enforcado.

 

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias