(*)Mário Ananias

Nesse mês frio de junho, quando as articulações sofridas por quase setenta primaveras se ressentem, recordo com um pouco de saudade da minha primeira namorada. Moça bonita demais, morena clara, com olhos de um verde profundo e cabelos castanho-escuros, dentes perfeitos e um andar de princesa. É bem verdade que tinha alguns anos mais do que eu, mas quem se importava? Por que me preocuparia com tais detalhes desinteressantes?
Ela, durante todo o tempo que durou a relação, nunca fez qualquer comentário em relação ao meu caminhar trôpego, instável; nem parecia ficar apurada quanto às minhas perspectivas de futuro em termos de trabalho e renda. Parecia que essas coisas nunca afetariam o nosso relacionamento. Sempre que a via ela estava muito bem vestida, cabelos bem cuidados, maquiagem perfeita, as unhas sempre bonitas como se tivesse acabado de sair do salão de beleza. Quanto a mim, ainda estudante de escola pública, só conseguia apresentar roupas simples, com as calças muitas vezes danificadas pelo aparelho ortopédico da perna esquerda, e as botinas. Ai! As botinas ortopédicas sem qualquer glamour, sem charme… Mesmo quando as engraxava, no capricho, ainda demonstravam minha condição social por serem acopladas ao próprio tutor longo, metálico e, às vezes, barulhento não havia opção de troca. Era aquele par ad aeternum, ou até que acabassem me obrigando a adquirir outro. Aquela máxima de que homens usam sempre o mesmo tênis em qualquer ambiente, social, esportivo, festa ou velório, era a expressão da verdade para mim, excetuando-se, claro, o fato de que eram botas montadas num aparelho ortopédico e não o tênis.
Aquela minha namorada, com tantas qualidades, foi reconhecida por seus talentos e disposição para as artes. Não me restava muito além de apoiá-la, aplaudila e torcer para que tivesse muito sucesso; que visse recompensado seu esforço e seu talento para além de quaisquer fronteiras. E mesmo ouvindo de muitos que aquele ambiente artístico que ela frequentava era propício a relacionamentos inconfessáveis, não me sentia em risco. Afinal, minha dedicação era sincera e minha admiração sublime.
Durou quase um ano e meio. Tempo suficiente para fixar na memória aquele bem-querer até um pouco ingênuo, mas verdadeiro.
O tecido belo e consistente da relação começou a se esgarçar quando desconfiei que ela foi a uma grande festa em Hollywood, na mansão de um diretor, sem me avisar e, naturalmente, nem me convidar. A desconfiança se confirmou, pela conversa de minha irmã com algumas amigas. Aquilo realmente me incomodou. Não que eu tivesse ciúmes. Longe de mim tal sentimento. Mas entendi que se fatos como esse ocorriam e todo o mundo ficava sabendo, talvez isso comprometesse a minha reputação.
Daquele dia em diante, deixei de ir vê-la no cinema, não a procurava na televisão e nem nas revistas que minha irmã e as amigas liam.
Também nunca disse a ela que a estava namorando, assim evitei o constrangimento de um término abrupto.
O fato de ela nunca ter vindo ao Brasil nem eu aos EUA, além de nunca nos falarmos, facilitou um pouco o rompimento, pois como ela nunca soube que era minha namorada, também não precisei de dizer que estava tudo terminado.

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/