(*) Mário Ananias

Quando nos sentirmos oprimidos, é bom lembrar que, enquanto há tempestade aqui, sempre haverá calmaria noutro lugar. E a alternância é cíclica.
Nos anos setenta, pós tv em cores, começava a ficar claro aos interessados pelo tema, que as salas de cinema experimentavam franca decadência. Várias delas colapsavam, num processo autodestrutivo, negligenciando manutenção, higiene, e exibindo filmes pornográficos chulos, inclusive com promoções do tipo “dois filmes por um ingresso”. O glamour das décadas de 1.950 e 60 se esvaia pelo ralo cultural, com louváveis e raríssimas exceções, como o Cine Pathé, na Cristóvão Colombo, 315. Enfim, nem esse sobreviveu. Como bem disse já em 1.913, o grande Castro Alves na magnífica poesia O Fantasma e a Canção: “O tempo, Átila terrível, quebra co’a pata invisível, sarcófago e capitel”. O tempo é guerreiro inelutável.
Cenas de desrespeito passaram a ser constantes, como certa vez, no Cine São José, da Platina 1.827, frequentado por estudantes secundaristas. Durante a projeção de um faroeste, numa cena em que um mexicano chega apavorado a um sítio, fugindo do bando que o intimidava e, esmurrando a porta clama aos berros, em castelhano, naturalmente: “Abre la puerta! Abre la puerta!”. E, antes que a cena prosseguisse alguém grita da plateia: “Calma que estoy nel bagno!”; enquanto outro grita do fundo da sala: “Ôh! Antóin. Num fica ai na frente, não, que mãe falô que faz mal pras vista!”. E ainda, às vezes, perturbadores que já tinham visto o filme, contam em voz alta as próximas cenas, tornando a audiência desgastante e não mais prazerosa.
No bairro Padre Eustáquio, para onde nos mudamos, vindos de João Monlevade para BH, no número 2.545 da rua de mesmo nome, estava o Cine Progresso. A porta de entrada era frontal à Padre Eustáquio e a de saída, lateral, para a Progresso. Era a sala mais próxima e também decaía em 1.979, porém apresentou um grande sucesso à época: Hair, dirigido por Milos Forman e estrelado pelo jovem John Savage. Belo filme, com proposta pacifista e músicas inesquecíveis como Aquarius, de Galt MacDermot, interpretada por Mamas&Papas, considerada uma das melhores músicas de cinema de todos os tempos.
Estávamos lá. Eu e meu irmão Luiz, ansiosos por aquele filme tão comentado e recomendado. Sentamo-nos no cruzamento do corredor de entrada com o de saída. Ótima localização, bem no meio do cinema.
Quando vou a eventos, quaisquer que sejam, desde muito cedo habituei a procurar me posicionar em pontos que facilitem o deambular de forma a evitar transtornos a mim e aos outros. Sempre que possível, tento ocupar assentos estratégicos que me facilitem chegar e sair e, ainda, que ofereçam apoios que permitam acessibilidade.
Naquele dia havia uma grande tensão pelo colérico movimento grevista, em especial do pessoal da construção civil, quando houve muita quebradeira e agressões que colocaram a cidade em polvorosa.
Vinte minutos após iniciada a sessão, ouvimos estampidos que ecoavam alto na sala, seguidos de gritos de desespero e início de um pandemônio. Deitamo-nos no chão, eu e meu irmão, entre as cadeiras esperando que os tiros parassem e pudéssemos sair dali.
Que susto! Não eram tiros. Eram rojões (ou bombinhas, como dizíamos) que moleques arremessaram dentro do cinema, pela porta de saída.
Se dependesse de eu correr naquele momento para sobreviver, esse texto só seria possível psicografado. Ufa!

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro:
Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias