Preocupado com a cirurgia para recuperação do “manguito rotador” do ombro esquerdo, repasso na memória as boas histórias que li no livro “Entre Linhas” do meu amigo Erivelton Braz. São diversas crônicas que resgatam momentos que apenas quem teve a sorte de ali nascer ou viver será capaz de entender sua extensão.
Inclusive um dos textos me chamou bastante a atenção pelo inusitado título, pois eu não sabia do que se tratava. Afinal o que seria um “passatão”? Excelente história.
A minha infância em Monlevade teve momentos hilários que, acredito, outras tantas experiências de outras tantas pessoas, conseguiram marcar esses flashes impressos em nós como tatuagem. Um desses momentos foi durante uma briga entre dois amigos. Coisa de meninos. Foi no tempo em que os filmes de faroeste começavam a ceder lugar para os exagerados filmes chineses de artes marciais. Imaginávamos, então, que se houvesse um exército de homens com aquelas habilidades, seriam invencíveis. Enfim, esmeraram nas respectivas poses para a luta. Como se cada um pudesse intimidar o outro apenas com o semicerrar os olhos, dobrar um pouco os joelhos e esticar as mãos como se fossem espadas. Dois passos para lá, mais um ou dois para o outro lado e, pronto. Começou o embate. Um dos contendores errou o golpe e bateu com a mão espalmada na beirada de um tambor, utilizado às vezes como piscina improvisada. Foi doloroso. A plateia o instigou para que continuasse, que partisse para o ataque, que justificasse o preço do ingresso… Ou não, porque afinal não havia cachê nem couvert.
– Vai! Num para, não!…
O desafiante, segurando a mão direita com a esquerda, se dobrando de dor, responde irado:
– Calma! Num tá vendo que minha mão tá machucada?!?!?
Deixou de ser combate para virar pastelão.
Outro desses episódios que só são possíveis por crianças de interior, um menino, com grande fama de “pidão”, foi a vítima numa brincadeira de mau gosto. Vivíamos num tempo de escassez de guloseimas, então, quando alguém aparecia com um pacote de biscoitos de polvilho, se transformava em alvo de olhares de desejo e, às vezes, de súplica. A maioria esperava que o sortudo oferecesse. O “pidão” se adiantava. Sabendo disso, um rapazinho chegou para o grupo de meninos, com um saco de papel mastigando alguma coisa. Disse que era quitanda e esperou o pedido que não tardou.
– Ôh! Me dá um, aí.
– Só sobrou um, então não comente com ninguém, tá?
– Tá!
Entregou o pacote com apenas um item que o “pidão” pegou rapidamente e enfiou na boca.
Foi gargalhada geral. Os outros meninos já estavam advertidos do conteúdo do pacote: uma “caca” de cachorro, esbranquiçada e ressecada que poderia, num rápido olhar, ser mesmo confundida com um biscoito. É claro que hoje, depois de mais de cinquenta anos, tenho que reconhecer que foi maldade, pelo menos um pouquinho. Mas quando essa memória volta, lembrando das gargalhadas e dos xingamentos do “pidão”, infelizmente ainda não consigo evitar o riso.